quinta-feira, 23 de abril de 2009

Projecção

Ser cinéfilo é ser Cinema. É projectarmo-nos no que vemos. É abstrairmos a realidade física que nos rodeia. É fugir ao sensorial e entrar no universo dos espectros, os bonecos de luz que nos fazem sonhar. Não há realidades paralelas. Há apenas um ente híbrido, fruto da fusão da realidade que nos é dada a perceber com aqueloutra que nos abre as portas do imaginário.
HRA

"Le cinéma substitue à notre regard un monde qui s'accorde à nos désirs"
André Bazin

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Sentir: sentir sabendo que estamos a sentir aquilo que sentimos. Sentir: sentir sem sabermos que estamos a sentir aquilo que sentimos. Entre um sentir e o outro reside a diferença que em nós determina a consciência e o conhecimento. Ao sentir, na sua expressão mais perfeita, sabemos qual a sua origem, o seu modo e o seu significado. Na sua forma mais elementar apenas nos apercebemos do seu modo, podemos desconhecer a sua origem e o seu significado.
Quando sentimos qualquer coisa sem sabermos o que estamos a sentir, no caso da visão, isso significa algo apenas visto (apreendido sem consciência, numa zona do écran que o olhar percorre sem interpretar: um pormenor no mar das coisas visíveis), certos traços mal registados (traços insuficientemente apreendidos, que no entanto podem preceder uma aparição, um fantasma) . O nosso olhar fixa-se sem ter a noção do conjunto, sem chegar a detectar a forma, sem saber se o espectro é espectro. Neste caso apenas se manifesta um sinal de algo que talvez só mais tarde seremos capazes de interpretar. A zona do écran será indefinida, o espectro não é outra coisa senão a ponta de um icebergue, a vaga manifestação do agente que ainda não discernimos. E o écran não é verdadeiro écran, é apenas isto: um campo insignificante, algo que não chega a ter significado. Algo que está presente, numa zona que tanto pode ser centro como periferia: nada nos diz como isso se situa em relação a tudo o resto.
No outro caso, quando sabemos o que estamos a sentir, sabemos de certeza em que zona do “écran” o sentimos. Temos a noção mais ou menos exacta do ponto em que surge a coisa, sabemos se ela surge no centro ou na periferia do campo que o nosso olhar domina. E sabemos mais ainda: sabemos, com um maior ou uma menor certeza, que ela pode relacionar-se com algo que se situa off-screen, no universo que envolve o próprio campo em que a vemos. Se se confirma aquilo que nos sugere a ciência, no centro do écran concentra-se o trabalho que se produz na parte de trás do cérebro, ao passo que, na periferia do écran, se concentra o trabalho do cérebro que decorre nas zonas que se situam mais à frente, ao longo da massa neuronal, projectando o sentir. Em termos de evolução, essa parte mais avançada no cérebro é também a mais recente, não deixando de ser significativa a função suplementar que lhe é destinada: controlar a periferia. Um olho no visor, bem na mira, o outro em full-screen. É neste estado – em que todos os modos de sentir entram em jogo, em que o desejo ganha corpo –, que o corpo se projecta num novo modo de sentir: despertando para a novidade, aguçando a percepção, implementando dramaticamente os registos.
Se a coisa em vista for projecto, se admitirmos que, ao saltar, sentindo-se suspenso no ar, o lagarto se sente a voar antes de ser capaz de o fazer, essa suposição levanta algumas questões. A primeira e principal (como o lagarto diria se soubesse falar) é esta: será ele mesmo capaz de voar? Se pudesse ver-se ao espelho nas suas desajeitadas tentativas, se tivesse o mínimo de bom senso, de certo que se enchia de vergonha e não daria nem mais um salto. Nele manter-se-iam atrofiadas para a eternidade certas zonas do cérebro, não deixaria nunca de fazer pouco mais que rastejar. Mas se, tal como ele acabou por fazer, não tiver medo de se perder na insensatez, se não fixar um objectivo, se não se afincar na teimosia, se a projecção não for tenaz, por certo que nunca chegará a voar. Para começar, basta senti-lo? Sentir isso pela primeira vez? Pode ser inibidora a consciência, a verdadeira consciência das verdades, comuns ou universais: um lagarto não sabe voar. Pode no entanto o desenho do homem que se desenha, saindo de si sem nunca mudar (reproduzindo-se igualzinho a si próprio, sem inovação), ajudar-nos a encontrar respostas idênticas àquelas que lagarto procurava depois de ter dado o primeiro salto em que se sentiu a voar. Basta imaginarmos que, no segundo desenho de si, sentindo algo de novo, com maior ou menor prazer, o homenzinho introduz um elemento original, uma nova qualidade, um simples vestígio disso (uma inovação técnica). E que esse elemento se desenvolve a cada novo registo, a cada nova representação de si próprio. Podemos imaginar que os seus braços se abrem às tantas, como se pretendesse voar. Podemos imaginar que as suas mãos, pouco a pouco, de desenho em desenho, se alargam para obterem uma cada vez maior superfície de apoio na massa de ar. A cada nova representação que de si próprio ele desenha, as suas mãozinhas transformam-se noutra coisa: algo em que vagamente começamos a adivinhar o perfil de umas asas. Podemos do mesmo modo imaginar que as suas pernas, que se vão abrindo e fechando a cada novo desenho, se começam a unir criando entre si penas ou uma membrana que, no boneco seguinte, o vemos utilizar para equilibrar o corpo que pretende fazer subir no ar. Podemos vê-lo melhorar o desenho e o desempenho, a cada nova versão do esboço anterior. Podemos finalmente perceber como ele consegue pôr-se a voar. Mas podemos ainda supor que o homenzinho é um ser perverso que activa os seus descendentes, logo ao nascer, que logo os determina, pondo-os ao seu serviço: tornando-os escravos da ideia insensata que ele teve na origem de tudo aquilo, fazendo-os sentir que são capazes de voar. Que mais podemos imaginar? Dito por outras palavras: dado o gozo que elas dão, que mais podemos esperar de coisas insensatas como esta?
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In olhos no écran
as coisas vistas pelo cinema

por Ricardo Costa

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